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Tornar-se humano - Uma jornada em construção

 


O ser humano não nasce pronto—ele se torna humano à medida que desenvolve consciência, amor e liberdade. Muitas leituras da tradição cristã enfatizam a fragilidade humana após a queda, mas as Escrituras e o pensamento filosófico também nos convidam a enxergar a vida como um processo contínuo de transformação. 

E se a humanidade fosse menos sobre um estado fixo e mais sobre um caminho em construção?

 ● A Criação como Chamado ao Vir-a-Ser

 A narrativa da criação em Gênesis 2:7 oferece uma pista fundamental para essa abordagem. 

O texto afirma que Deus "formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem se tornou alma vivente." O verbo "tornar-se" já aponta para uma condição dinâmica, não estática. O ser humano não é criado acabado, mas como um projeto em aberto. 

Paul Tillich, em sua teologia existencialista, propõe que o ser humano vive na tensão entre a finitude e a liberdade, chamado a se realizar na busca pelo sentido último. Para Tillich, "a essência do homem não é algo perdido no passado, mas algo que se encontra no futuro" (A Coragem de Ser). 


● A Queda como Despertar da Consciência 

A chamada "queda" pode ser reinterpretada não apenas como um ato de desobediência, mas como o despertar da consciência moral. 

Quando o texto bíblico diz que "os olhos de ambos se abriram" (Gênesis 3:7), é possível enxergar nesse gesto o início do discernimento entre o bem e o mal — um marco necessário para a evolução espiritual. 

Carl Rogers, em Tornar-se Pessoa, escreve que "a plena realização da humanidade acontece quando a pessoa se torna consciente de si mesma e responsável por suas escolhas". A consciência, embora dolorosa, é o que inaugura a liberdade e a possibilidade de crescimento. 


● A Transformação Contínua 

A Bíblia não descreve o ser humano como condenado a uma natureza estática, mas como alguém chamado à transformação.

 O apóstolo Paulo escreve: "Não se conformem com este mundo, mas sejam transformados pela renovação da mente" (Romanos 12:2). O termo grego metamorphoō sugere um processo contínuo, semelhante ao que ocorre na natureza — uma evolução espiritual em direção à plenitude. 


● Cristo como Modelo do Humano Pleno

 Se Adão representa o início da jornada humana, Cristo representa seu destino. 

O Novo Testamento apresenta Jesus como "o segundo Adão" (1 Coríntios 15:45), o ser humano que realiza plenamente a vocação divina. Em Jesus, não vemos apenas um restaurador do que foi perdido, mas o modelo do que a humanidade pode se tornar. 

Paulo escreve: "Somos transformados de glória em glória na mesma imagem" (2 Coríntios 3:18). Aqui, o caminho espiritual é apresentado como uma jornada gradual de crescimento, não uma condição fixa. 


● O Reino de Deus como Projeto Coletivo

 A evolução humana não é apenas individual, mas coletiva. Jesus descreve o Reino de Deus como "dentro de vocês" (Lucas 17:21), uma realidade que emerge na medida em que a humanidade se humaniza. 


● Ser, Tornar-se, Humanizar-se

 O ser humano não é uma ruína do que um dia foi, mas uma promessa do que ainda pode ser. A Bíblia, lida por essa lente, não conta a história de uma queda irreversível, mas de uma humanidade em construção, guiada pela consciência, pelo amor e pela liberdade. 

Como escreveu o apóstolo Paulo: "Aquele que começou a boa obra em vocês vai completá-la até o dia de Cristo Jesus" (Filipenses 1:6). 

Tornar-se humano é, em última análise, tornar-se mais imagem de Deus — não por decreto, mas por jornada. 



Débora Aquino .


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